"Montagem Intérdita" (Sousa, 2001)
Bazin expõe os pressupostos da sua concepção de cinema, na questão da montagem, em "Montagem Interdita", e "A Evolução da Linguagem Cinematográfica"; em confronto com as teorias e produções cinematográficas soviéticas.
A realização da significação e da representação no cinema faz-se pela desconsideração da montagem, ou, pela submissão desta a efeitos de representação objetiva e realista do universo extra-fílmico. Ao contrário de Einstein, Bazin visa alcançar a reprodução objetiva do real, objetivo fílmico defendido por Baudry e Comolli.
Centrando-se numa obtenção fiel, nega a tradução de um sentido em que as imagens advêm da sua inter-conexão, ou efeito kulechov. O real dispõe de uma ambiguidade que lhe é inerente, sem sentidos aprioristicamente determinado. Uma configuração óptica fiel desse real passa pela salvaguarda dessa ambiguidade. Nega-se a possibilidade de se construírem sentidos.
Bazin escreve: "a imagem conta em primeiro lugar, não pelo que acrescenta à realidade, mas pelo que dela revela"; demonstrando a função ontológica da tela no seu acto de representação.
Para se fazer uma reprodução fiel utiliza-se o procedimento hollywoodiano da transparência. Bazin defende uma superação dos limites da montagem analítica, devido ao anti-realismo proveniente da decomposição macro e micro-fragmentária.
Bazin postula a interdição da montagem. A denegação da justaposição de planos visa a preservação da globalidade, conduzindo à autentificação. Bazin refere que devem estar reunidos num plano os elementos que, antes, a montagem dispersou.
Bazin valoriza o plano-sequência e a técnica, suturante e correlacionada com o plano-sequência. Quando existem vários factores de acção a montagem é interdita.
O cinema permite a representação de várias acções numa só imagem, em coexistência espácio-temporal simultânea e global. Os filmes de Welles, Renoir ou Ozoguchi são exemplos conseguidos, através da técnica da profundidade de campo.
Jean Ricardou classifica a comunicação fílmica de síntese imediata, e a literária de síntese diferida, pela sucessividade da palavra. A transmutação do texto literário em síntese imediata mostra-se impraticável fora de uma derrogação do caráter crono-sintáctico do sistema linguístico, pois na concretização requer uma libertação das regras e convenções sintáticas da linguagem verbal. Mas é possível estabelecer um paralelismo com a percepção global da imagem fílmica que englobe mais de um representado diegético – ou seja, a rasura da montagem analítica segundo Bazin.
É dado um exemplo retirado de Directa, de Nuno Bragança, onde se comunicam conteúdos semióticos simultâneos. A leitura é remetida para uma descodificação pouco tradicional, para criar tipograficamente o paralelismo das acções enunciadas. A demarcação em branco funciona como elemento relacional da estrutura discursiva, produzindo uma disposição capaz de representar tipograficamente o impacto da simultaneidade. Os eventos diegéticos diferenciados que se relacionam narrativamente numa linha de acção convergente articulam-se técnico-discursivamente em simultâneo. Há assim uma representação verbal do real diegético pela ausência de justaposição linear de planos/fragmentos textuais, da découpage sucessiva do espaço. O texto não decompõe a matéria diegética em unidades ficcionais; tenta sim dar uma representação global e simultânea do representado.
Este processo semiótico-narrativo repercute-se no âmbito leitoral, no sentido da expectação fílmica que Bazin implicava na supressão da montagem.
Na montagem paralela a participação leitoral na compreenção-interpretação da mensagem textual era discursivamente ordenada, consignando-se aos moldes precetivos em que se implica uma decifração sequencial das ações narradas, seguindo uma ordem decidida pela entidade enunciadora, mesmo sabendo-se da concomitância diegética dos eventos enunciados. No exemplo contraria-se a construção do significado global, tentando-se romper com a sucessividade discurssiva pré-determinada pelo narrador. Logo, alarga-se a liberdade interventiva e interativa do leitor na dinâmica textual. A justaposição em paralelo faculta que a descodificação se possa iniciar em diferentes acções. Transita-se para uma atribuição da responsabilidade do sujeito da enunciação para o da receção. Superam-se os limites tradicionais do campo de leitura que implicam uma linearidade discursiva pela qual se lê um acontecimento de cada vez, concomitantemente. Tende-se para uma conversão do caráter linear da exposição dos eventos textuais, o qual permite percepcionar coexistência simultânea de ocorrências semióticas, e daí seleccionar qual a que se pretende descodificar primeiro.
A intervenção leitoral aproxima-se da participação espetatorial mediante a fixação em cada registo icónico de elementos principais a par de elementos subsidiários, que não interessam à leitura imediata. O espetador, perante cada imagem fílmica, escolhe a cada momento onde iniciar a sua ocularização; contrariando-se o policentrismo da imagem.
No texto literário tradicional a leitura é imposta.
Perfaz-se a transgressão fertilizante na formulação da simultaneidade diegética espácio-temporal explorando-se novos recursos semiótico-discursivos, por inspiração cinematográfica; de natureza baziniana.
(SOUSA, Sérgio Paulo Guimarães de. Relações intersemióticas entre o cinema e a literatura : a adaptação cinematográfica e a recepção literária do cinema. Braga : Universidade do Minho, 2001)
Sem comentários:
Enviar um comentário