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domingo, 8 de janeiro de 2012

A ler "O prisioneiro da grade de ferro (auto-retratos)" (2003)

Nesta mensagem faz-se uma leitura do documentário O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos), realizado por Paulo Sacramento, em 2003, produzido por Gustavo Steinberg, nos estúdios cinematográficos Olhos de Cão. 

Este documentário mostra, através de uma perspetiva interior, como se passava a vida no enorme estabelecimento “Casa de Detenção Professor Flamínio Fávero”, do Complexo Penitenciário de Carandiru, em São Paulo; com imagens captadas durante os sete meses que precederam a sua demolição em 2002, dez anos após o massacre de Carandiru.








A contextualização:

O documentário foi feito no âmbito de um projeto de reabilitação: um curso de vídeo e som, para os detidos; o que permitiu conhecer as suas vivências quotidianas e entrar no seu esquema complexo.

O massacre de Carandiru tornou-se um marco mundialmente reconhecido pelos confrontos brutalmente sangrentos entre a polícia e os presidiários, passado no dia 2 de Outubro de 1992, na Casa de Detenção Professor Flamínio Fávero. Este acontecimento é considerado a maior violação dos direitos humanos na história do Brasil. As Tropas de Choque da Polícia Militar, comandadas por Ubiratan Guimarães, invadiram o presídio com o objetivo inicial de acalmar divergências entre grupos de presidiários; porém a situação agravou-se, acabando com a morte de mais de uma centena de mortes de presidiários.

O acontecimento continua envolto por mistérios, visto haver duas versões: a oficial e a dos presidiários. O comandante Ubiratan Guimarães foi o único julgado e condenado pelo homicídio em massa; porém este nunca chegou a cumprir pena. Ele foi eleito deputado estadual e tal fez com que conseguisse ter sucesso no seu pedido de recurso e ser liberado. Esta é uma situação demonstrativa da corrupção existente no sistema de justiça brasileiro, que se reflete em depoimentos revoltosos dos representados. O massacre de Carandiru é considerado o principal responsável para a mudança de instalações do estabelecimento prisional.

Neste documentário está presente a grande miscigenação cultural que se encontra no território brasileiro, como por exemplo as diferenças culturais oriundas de tradições indígenas, destacando-se em alguns rituais; africanas, destacando-se nas danças como a capoeira; e europeias, destacando-se o catolicismo. Para além de viverem no mesmo espaço, estas culturas diferentes partilham o mesmo espírito festivo, característico do Brasil, e a mesma língua. O facto de falarem português permite-nos, a nós portugueses, ganhar uma maior afabilidade e compreensão aos testemunhos reais dos presidiários; porque, mesmo que seja de modo inconsciente, o fator da comunicação é influente na maneira em que apreendemos as mensagens.

No início do século XXI, época em que foram captadas as imagens do documentário, havia um constante sentimento de revolta por parte do povo brasileiro, devido ao sistema de privilégios e de corrupção vigente no Brasil: a Ditadura Militar, o Collor, o PC Farias, a SIVAM, a Pasta Rosa, o baixo orçamento, a compra de votos nas eleições, o Eduardo Jorge, as privatizações de determinadas empresas estatais para o favorecimento de grupos financeiros, as sucessivas denúncias contra governadores, senadores e deputados federais, e as denúncias de ilegalidades empresariais são os fatores responsáveis por tal insatisfação.

Na altura das filmagens a presidência do país era levada a cabo por Fernando Henrique Cardoso, tendo sido uma presidência envolta por escândalos. Este presidente foi responsável pela crise no sector energético e pela crise financeira provocada pela desvalorização da moeda.

Mais tarde, em 2002, o povo brasileiro conseguiu eleger, através de um legítimo processo democrático, um representante de esquerda política: o atual presidente Lula da Silva, que propôs mudanças radicais na governação do país.

Relativamente ao O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos), é importante definir o seu teor crítico e de consciencialização em relação aos direitos humanos e em relação à problemática de reabilitação social e educativa.

A receção crítica:

A crítica especializada exaltou bastante o documentário. O realizador consegue alcançar o objeto de estudo de uma maneira inovadora na história do documentarismo; dando a câmara aos representados e dividindo com eles a própria autoria do filme. A isto se dá o nome de cinema verdade.

Já noutros documentários de cinema verdade os representados ajudaram na orientação tomada pelo realizador, mas estes não dirigiam, editavam e produziam o documentário em si, como o fizeram os presidiários de Carandiru.

É considerado uma obra-prima por Eduardo Valente; sendo também aclamado por críticos como José Geraldo Couto, Ana Paula Souza, João Mors Cabral, Eduardo Valente, Felipe Bragança, Paula Alzugaray, Luiz Carlos Merten, Luiz Zanin Oricchio, Denise Lopes, Rubia Mazzini, e Marcelo Coelho. Em comparação com o outro documentário que trata o mesmo tema, de Hector Babenco, é sobrevalorizado.

O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos), mesmo não tendo conseguido alcançar um elevado número de vendas em bilheteira no cinema, conseguiu ser premiado com:
    • Prémio da Crítica como Documentário Longa Metragem em 35mm, em 2003, no 31º Festival de Gramado;
    • Prémio de Melhor Documentário - Competição Nacional e Melhor Documentário - Competição Internacional, no Festival É Tudo Verdade;
    • Prémio Especial do Júri, em 2003, no Festival do Rio;
    • Menção Honrosa por parte do júri, em 2004, no Festival do Uruguai,
    • Prémio de Melhor Documentário, recebendo o troféu Biznaga de Plata, no 7º Festival de Málaga;
    • Prémio Melhor Documentário - Opera Prima, no 8º Festival Internacional Latino-Americano de Cinema de Los Angeles.
O Realizador:

Paulo Sacramento, natural de São Paulo, é formado em Cinema pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Em 1997 dirigiu a Associação Brasileira de Documentaristas de São Paulo.

Iniciou a sua carreira como realizador com o documentário aqui tratado. Para além de realizador é editor, assistente de realização e produtor.

Participou na edição de 15 curtas-metragens; e de longas-metragens como Tônica Dominante(2000) de Lina Chamie; como Cronicamente Inviável(2000) de Sérgio Bianchi; e como Quanto vale ou é por Quilo?(2003) de Sérgio Bianchi; e na montagem e produção de DeAmarelo Manga(2001) de Cláudio Assis, que venceu o Festival de Brasília em 2002; e de A concepção(2005) de José Eduardo Belmonte, pelo qual conseguiu o prémio de Melhor Montagem no Festival de Brasília.
Ainda foi assistente de realização e produtor de finalização do filme A Causa Secreta(1994) de Sérgio Bianchi.
Da sua autoria são, também, as curtas-metragens Ave; e Juvenília, premiada nos festivais Henri Langlois e Rimini. Mais recentemente produziu e editou o filme Encarnação do Demônio(2007), de José Mojica, juntamente com Fabiano e Caio Gullane e Débora Ivanov.

A análise:


Este documentário é realizado tanto pelo autor como pelos presidiários, através principalmente das entrevistas. A realidade demonstrada é bastante fiel porque, por ter a autoria dos presidiários, os representados sentem-se mais à vontade para mostrar as suas vivências.

O documentário inicia-se com dados específicos que permitem ao espetador fazer uma breve contextualização da história que envolve o estabelecimento prisional de Carandiru. As imagens iniciais mostram-nos a queda dos complexos da Casa de Detenção Flamínio Fávero, num sentido revertido, anunciando o desvendar de um segredo já destruído. Eduardo Valente refere-se a esta imagem como uma assombração, ou algo que não deve ser esquecido.

O documentário divide-se em partes, segundo a temática, e em sub-partes, segundo a zona. Encontram-se slides divisores que indicam cada capítulo, com a sua temática principal; assim como se encontram também slides sub-divisores, que apresentam os pavilhões onde cada qual contem mensagens das pessoas que aí habitam. Deste modo o autor consegue manipular os temas de acordo com o discurso feito pelos testemunhos de cada pavilhão, de modo a juntar ambas as divisões num todo organizado.
A apresentação dos presidiários é feita ao longo do filme, os nomes ou alcunhas dos personagens vão aparecendo em slides pretos, antecedendo a sua apresentação e mensagem.

O primeiro capítulo é a introdução. Após aparecer o primeiro representado, o Celso, que mostra as suas instalações, fala nos erros do seu passado e da união que sente no local contra o sistema; aparece uma sequência com diversos presidiários que participaram no documentário, feita através da foto e da descrição dos seus nomes, números e complexos a que pertencem; o que passa a sensação de distanciamento daquelas pessoas, como se estas fossem apenas números. De seguida aparece a mensagem de Kric e FW, numa música Rap, que remete o espetador para a atividade vivida no estabelecimento.

O primeiro pavilhão a ser retratado é o 8. Aqui é logo enquadrada a ideia de auto-retrato e de cine-olho, pois observa-se um presidiário a filmar e de seguida vê-se a imagem que este estava a filmar. A felicidade expressa nas faces dos camara-man apela às emoções do espetador.
Neste pavilhão inicia-se a temática da Inclusão, ou seja, do momento de receção dos presidiários ao estabelecimento, mostrando, do modo mais humano possível, um trabalhador a tratar das fardas para os novos reclusos.

De seguida inicia-se o retrato do pavilhão 2, e o capítulo da reeducação.
No presente capítulo vê-se o modo como é realizada a palestra da triagem, e são apresentados os objetivos de reeducação do estabelecimento. De seguida são fornecidos os números de população de cada pavilhão.
Depois são apresentados Béa, que mostra a atividade desportiva de Boxe, num ringue improvisado pelos presidiários, com uma conotação positiva; é apresentado o Seu João; e é apresentada a atividade desportiva do Futebol que também tem um grande impacto ao longo da película.

Dando seguimento à temática da reeducação são mostrados depoimentos que explicam as profissões existentes na prisão, iniciando assim a temática das ocupações.
No pavilhão 4 foca-se o Hospital Prisional e as suas falhas, observando-se alguns atentados aos direitos humanos. Os próprios médicos admitem esses problemas e culpam o governo.
No pavilhão 6 continua-se com a temática das profissões no estabelecimento, destacando-se as atividades artísticas. Também se mostram testemunhos de presos estrangeiros que depreciam as condições em que vivem.

De seguida é mostrado o modo como trabalha a Comissão Técnica de Avaliação, a realidade aparenta-se a uma sátira ao se mostrar imagens seguidas de perguntas de carácter geral e subjetivo, presentes no Exame de CTC, um exame que tem o poder de libertar ou deter um presidiário. Aqui há um testemunho que afirma que as decisões não seguem as leis penais, mostrando um exemplo, através de um dado de arquivo, de um recluso a que foi negada a liberdade.

Depois é apresentado Pernambuco, um presidiário lutador de Vale-Tudo, que descreve as Saidinhas. Deste modo, é vinculada a nova temática de relacionamento com o exterior. As Saidinhas, que são uma saída em liberdade condicional por um prazo específico, são descritas como um estímulo para o bom comportamento no estabelecimento.

De seguida aparecem várias imagens de cartas exteriores para os presidiários, com mensagens alegres ou românticas, que apelam às emoções do espetador. Também, como um apelo, são feitos depoimentos em que os próprios reclusos afirmam pretender fazer da prisão um lugar melhor, para melhor se reintegrarem depois na sociedade, associada a um sentido de responsabilidade individual.

Posteriormente, é iniciada a temática do comércio. A moeda comercial mais usada é o tabaco; adquirindo o valor que tem no exterior (um maço de tabaco equivale a um real).

Após a mostra de algum comércio dá-se uma quebra com a música Efeito Global, dos Sobreviventes do Rap. É mostrada uma vertente mais pessimista, através de um sentimento de abandono. Vêm-se as tatuagens feitas no estabelecimento, algumas com uma temática mórbida, outras com imagens de filhos, e os instrumentos e técnicas utilizadas na suas conceções.

Em contraste, inicia-se, no pavilhão 7, a temática religiosa. A Assembleia de Deus que existe dentro da prisão traz esperança, união e crença na absolvição a muitos presidiários, segundo o Pastor Adir.
Volta-se então à temática do trabalho visto como um dever cívico, para se fazer cumprir a justiça. Depois da Faxina, mostram-se imagens de uma reunião festiva.
Continuando com a religião, são mostradas imagens do Pai Alex, com os seus rituais e desejos esotéricos.

Caindo a noite, o espetador é remetido para a imundice existente no estabelecimento através de imagens de ratazanas no campo exterior. O exterior faz a ligação com a temática seguinte, pois é passada principalmente nesse espaço.

Volta-se, assim, à temática da relação com o exterior, com filmagens do Dia de Visita. Esse dia é um incentivo para todos os reclusos. As fotos de família, tiradas pelo recluso fotógrafo Nal, fazem a ligação com temáticas mais marginalizadas, pois este começa a referir as fotos violentas já tiradas, de reclusos que acabaram por morrer no estabelecimento.

É desta maneira que se inicia a temática da marginalidade face à lei. As mortes, segundo Nal, são banais, podendo acontecer só por um insulto caso seja quebrado o código de ética existente na prisão. A maioria das mortes dão-se por espancamento ou esfaqueamento.
Posteriormente é apresentado o interior do pavilhão 5. Mirandê apresenta ao espetador a Rua das Flores onde se encontram a maioria dos homossexuais. Estes homossexuais admitem trabalhar como prostitutos, tendo programas com preços determinados, porém, falam também do modo como são explorados por essa profissão. Mirandê afirma sentir-se abandonado pelos responsáveis pelo estabelecimento, pois não nota sinais de qualquer reeducação.

Neste capítulo é mostrado o modo como se faz e destila álcool caseiro, chamado de pinga, Maria Louca ou Água de Fogo. Também são mostradas plantações de Cannabis e o processamento desta em droga. Ainda é referido o Crack. Nas prisões as drogas são caras e têm sempre imensa procura. As dívidas relativas a drogas conduzem vulgarmente à morte.

Continuando no panorama da ilegalidade, são mostradas as armas, chamadas de Facas de Cadeia, e explicado o modo como estas são trabalhadas, utilizando-se como material pedaços de ferro existentes na Cadeia. A posse de uma arma pode levar ao Castigo. Deste modo, é feita a transição para o próximo tema, chocante para os defensores dos direitos humanos.

As imagens que se seguem mostram a brutalidade vivida nas celas do Castigo. Os reclusos que infringem as regras do estabelecimento são colocados nessas celas sem condições básicas de conforto, como água, camas ou luz, totalmente isolados sem estímulos mentais, por um período demasiado longo para uma vida humana.

De seguida, para amenizar o ambiente extremamente pesado pelo qual caminhava o documentário, são apresentados Claudinho, o poeta, Mr Pequeno, rapper, e Joel e Marcos que mostram os passatempos de comunicar com o exterior através de espelhos. Os espelhos permitem o aumento da visão do exterior, abrindo o horizonte para além das pequenas janelas. A visão do exterior traz o sentimento de nostalgia aos reclusos. A saudade e a tristeza são demonstradas também por objetos mostrados pelos presidiários, fazendo a comparação da sua vida anteriormente e no momento.

Os discursos dos reclusos acabam com o apelo destes para que o espetador compreenda os seus pontos de vista, para que valorize a vida em liberdade, e para que não cometa erros; admitindo ao nascer de um novo dia que a vida no estabelecimento prisional de Carandiru é vivida dia-a-dia. Neste ponto aparece um guarda prisional a desrespeitar os indivíduos que o olham na cela.

O documentário é finalizado com entrevistas aos ex-diretores que destacam as falhas e dificuldades existentes no estabelecimento culpabilizando o governo e o seu sistema corrupto, e a falta de ajuda, pois a prisão não está a ser um espaço de reabilitação.

Este documentário, no geral, apela à humanidade e cidadania que todos devemos ter, desvalorizando o passado dos reclusos que os levou ao local. É um documentário com uma função reflexiva.
Em termos de estilo, O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos) pertence ao estilo desenvolvido por Jean Rouch, o cinema directo, devido à sua objetividade, imediatismo, à captura fiel de imagens do quotidiano dos representados, sem comentários de valor implícitos ou explícitos. Ao misturar entrevistas com os dados recolhidos, o autor ignora a sua voz em prole dos entrevistados e dos outros autores presidiários. 

1 comentário:

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